Jussara Lucena, escritora

Textos

A estufa

Nina recebeu um telefonema inesperado. O gerente de um banco precisava falar-lhe com urgência. Estranhou, pois o homem lhe falou algo sobre decidir o que fazer com o dinheiro do tio Hipólito. Ela vivia sozinha desde a morte dos pais e do irmão num acidente de automóvel. Não tinha outros parentes dos quais tivesse conhecimento, a não ser o tio que há muito vivia isolado, cuidando de suas plantas.

Recordou alguns dos raros momentos em que esteve na casa dele, a pedido de seu pai: “Vamos, meninos. Precisamos visitar o tio Hipólito. Ele é estranho, mas é meu irmão. Precisamos ser solidários, quem sabe um dia ele mude”. Seu pai morreu e com ele a esperança da transformação do velho sovina.

O tio morava numa velha casa, que nunca vira uma demão de tinta. Os móveis, rústicos, foram todos construídos pelo próprio homem. Não havia luz elétrica na casa, e a água vinha de um antigo poço. Hipólito se recusava a pagar tarifas ao governo. O fogão à lenha de metro usava a madeira coletada nas matas da redondeza. Possuía no terreno uma horta onde colhia as verduras e legumes que consumia. Criava algumas galinhas caipiras e tinha uma vaquinha que lhe dava o leite. Passavam-se os anos e ele calçava sempre as mesmas botas, a mesma calça de brim cheia de remendos e algumas camisetas que conservava desde o tempo do Serviço Militar.

Contrastando com toda a pobreza da morada e das vestes do Tio Hipólito, atrás do pomar, mais ao fundo do terreno, havia uma linda estufa, construída em madeira e vidro. Nela o homem havia investido boa parte de seu tempo e algum dinheiro. O interior era dividido em duas partes. Uma onde ele produzia as plantas e flores que vendia para o seu sustento e outra onde plantava as suas amadas folhagens, que não se desfazia por nada nesse mundo. Ninguém sabia ao certo se o cultivo da estufa lhe rendia algum dinheiro. Se rendia algum, com certeza não investia em si próprio.

Hipólito tinha o hábito de caminhar olhando para o chão, sempre procurando algo que pudesse ser reaproveitado e a única coisa que comprava no armazém eram alguns saquinhos plásticos, usados na produção das mudas. Geralmente, não saía de casa e quando o fazia, era a bordo de uma velha bicicleta Gärick da qual ele se orgulhava pelo estado impecável e do potente farolete, movido pelo dínamo instalado junto à roda. As compras eram feitas na cidade vizinha, num velho armazém. Nunca entrava pela porta da frente. O proprietário o atendia em uma saleta nos fundos. Ninguém entendia o porquê, já que ele nunca levava nada de volta para casa.

Quando alguém visitava Hipólito, o máximo que ele oferecia aos visitantes era um pouco d’água, servida de um velho filtro de barro em copos reutilizados de massa de tomate. As frutas do pomar eram proibidas de se tirar e apodreciam ou eram comidas pelos pássaros, nunca dadas. “Se você dá alguma coisa para alguém, ele se acostuma mal e sempre vem buscar mais” – dizia Hipólito às gargalhadas.

Desde que o pai morrera, Nina nunca mais vira o tio Hipólito. Não custaria nada ver como ele estava. Faria isso no fim de semana. Organizou as provas que aplicara durante o dia, precisava corrigi-las mais tarde.

No dia seguinte, aproveitando o horário do almoço, foi falar com o gerente do banco. Identificou-se e foi encaminhada para conversar com um gerente de contas. Estranhou o tratamento personalizado. Esperou por alguns instantes numa poltrona confortável onde lhe foram servidos café e água. Perguntou para a senhora que a servia:
- Todo mundo aqui é tratado dessa forma?
- Não senhora, só os clientes VIP.
- Acho que eles erraram de cliente, mas já que estou aqui, vou aceitar. Hoje o dia não será nada fácil.

Foi encaminhada para uma sala reservada e lá estava o gerente: sorridente e engomado. Estendeu-lhe a mão.
- Boa tarde! Senhorita Nina de Albuquerque Guimarães.
- Sim, não sei se sou a Nina de Albuquerque Guimarães que espera, mas este é meu nome.
- A senhorita não é a sobrinha do Seu Hipólito de Albuquerque Guimarães?
- Sim, sou eu.
- Pois bem, o Seu Hipólito foi um de nossos melhores clientes.
- Acho que o senhor está mesmo enganado. O tio Hipólito não teria dinheiro para guardar em um banco, quem dirá ser um cliente especial. Acho melhor o senhor ligar para este seu cliente especial e confirmar quem é a sobrinha dele, a de verdade.
- Infelizmente não será possível. Desculpe-me, talvez a senhorita ainda não saiba. Que falta de tato a minha. O Seu Hipólito faleceu há alguns dias.

Nina ficou um tanto sem jeito. Se fosse mesmo o tio quem morrera, se sentiria culpada por não o visitar.
- O senhor está enganado, com certeza.
- O nome de sua avó paterna é Tereza Albuquerque?
- Sim, isso mesmo.
- Então não temos um engano. Veja, esta é a cópia da carteira de identidade de seu tio.

Era o tio Hipólito na fotografia, muitos anos mais jovem, mas ele mesmo. A moça ficou pensativa por alguns instantes e o gerente calou-se compreendendo o momento pelo qual ela estava passando. Logo depois começou a contar a história que o fez procurar por Nina.

***

O Seu Hipólito um dia me procurou querendo abrir uma conta. Foi difícil, ele não possuía nenhum comprovante de renda e queria apenas depositar o valor mínimo. Eu disse a ele que poderia apenas abrir uma caderneta de poupança, o que ele aceitou. Durante anos e anos ele depositava alguns trocadinhos na conta, um mínimo para que ela continuasse aberta. Sempre me procurava e contava a história de sua estufa e das plantas cultivadas. Ele me dizia: “Essas plantas guardam todo o meu dinheiro”. Sempre imaginei que era uma boa escolha cuidar de plantas tão belas quanto as que ele tinha. Eu sempre comprava uma no dia do aniversário de minha esposa.

Passados vinte anos, ele entrou na minha sala, vestindo a mesma roupa usada no dia que o conheci, e me disse:
- Seu Cláudio, eu preciso de um carro forte, desses que transportam essa dinheirama toda.
- Não me diga que o senhor guarda dinheiro embaixo do colchão! Se guarda, é muito provável que não valha mais nada.
- Posso não ter estudo e nem viver numa bela casa como a sua, nem sento numa poltrona confortável, revestida em couro, porém bobo eu não sou.
- Não queria lhe ofender, mas preciso de um bom motivo para mandar um veículo até sua estufa.

Ele abriu um pacotinho plástico que guardava no bolso, um saquinho daqueles onde se produzem mudas e despejou em minha mesa um punhado de joias em ouro e algumas pedras preciosas.
- Tem muito mais de onde vieram estas – disse, deixando à mostra os dentes malcuidados.
- Seu Hipólito, joias para terem valor e serem aceitas em depósito precisam de algo que comprove a procedência.

Sorrindo, ele tirou do fundo do pacotinho os certificados de garantia das peças. Não tive como recusar o envio do carro forte. Fui até lá e presenciei uma cena incrível. Na estufa, do lado direito havia plantas cuidadosamente cultivas em vasos de cerâmica. Uma beleza sem igual. No outro lado, um monte de cacos de vaso de cerâmica, outro monte com terra fértil e ao fundo uma pilha de plantas arrancadas. “Que pecado!”, pensei, olhando o aparente desperdício.

- Não fique triste, Seu Claudio. Eu ainda vou replantar todas elas no quintal ao lado. Eu precisava retirar os saquinhos plásticos onde guardei as joias por todos esses anos. Preciso que guarde isto para mim – me disse o Seu Hipólito.

Apontou para dois imensos baús, construídos em madeira de lei. Sorrindo, abriu um deles. Havia centenas de pacotinhos transparentes. Em cada um uma joia e seu certificado. Perguntei onde ele comprara as joias e ele contou-me que comprava de um comerciante, seu amigo, numa cidade vizinha.

Levamos uma semana, com horas extras, para avaliar tudo. Seu Hipólito já havia feito a sua própria avaliação e tivemos que corrigir nossos dados por duas vezes. Quando voltou ao meu banco, me pediu que transformasse tudo em dinheiro e que guardasse em nossos cofres.

Queria algum em espécie. Saiu com dois mil no bolso. Precisava aproveitar um pouco da vida, pegaria um ônibus e iria visitar a sobrinha, pois nunca visitara o irmão desde que saiu de casa, depois de se casar. Levaria uma plantinha para ela. “Uma daquelas que replantei” – me disse ele.

Eu o acompanhei até a porta do banco e fiquei o observando. Tinha um sorriso estampado no rosto. Correu para atravessar a rua, não procurou a faixa de pedestres. Foi atropelado pelo próprio ônibus que o levaria. Foi há duas semanas, tempo que levei para localizar a senhorita, a única herdeira dessa fortuna.

***

Nina reformou a estufa, construiu uma casa e uma escola no terreno. Para a escola escolheu o nome do tio. Seria a forma de libertá-lo de sua avareza, pensou ela.

As plantas cresciam cada vez mais exuberantes.

Texto selecionado para compor a antologia do Prêmio Maria José Maldonado, promovido pela Academia Volta-redondense de Letras - 1. Lugar na categoria 40 a 59 anos.

Adnelson Campos
22/12/2017

 

 

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